...Parabéns atrasados.
Zeca nascia em Aveiro, 2 de Agosto em 1929.
Num blog, trendy, escrevo sobre uma das figuras menos "cool", de sempre, mas explica-se o facto pela sua obra intemporal, a que nunca se atribuirá o selo de "produto da moda". O Zeca era precisamente o anti-herói, e se tinha uma imagem de marca, óculos de massa, cabelo encaracolado, semblante carrancudo, dizem os seus amigos, um bom camarada cheio de noias e paranoias. Numa excelente reportagem da revista Blitz, revisita-se o homem, e guarda-se o mito, património nacional, gostemos ou não.
Eu, por exemplo não gostava. As inclinações políticas do trovador, incomodavam-me profundamente. detesto política, muito menos quem a canta ou faz dela um modo de ganhar a vida e o Zeca, embarcava no pacote dos meus "ódios de estimação". Talvez a culpa de tudo isto, o meu pai, durante anos um comunista convicto de índole agressiva, amargando-me qualquer coisa que tivesse ligações à esquerda conservadora. Depois há determinados géneros musicais, só poderemos entender com a maturidade, portanto seria estranho ouvir como hoje as suas músicas. A voz que reconheço como frágil, dócil, capaz de embalar, contador de histórias, tantas vezes focando-se nas mulheres, as de calcanhar rachado, pele fustigada, rugas cravadas no rosto e cabelos desgrenhados. Zeca não escreve sobre bonecas e o reino encantado. De guitarra em punho, não precisa gritar, para nos lembrar que o mundo é tudo menos um sitio perfeito, mas que juntos talvez consigamos fazer a diferença. E é nisso que acredito, antes de qualquer politiquice...
A ligação do trovador à natureza, seria inevitável, na sua forma de estar e na sua arte, aos 3 anos foi levado para África onde viveria algum tempo. Alguns dos seus discos, reflectem uma sonoridade experimental, legado que deixou ao sobrinho, João Afonso. Durante anos julguei-o meu conterrâneo como Paredes! Coimbra respira Zeca em muitos becos, mas a sua vida académica foi tão intensa, e mesmo com obrigações profissionais, fez questão de ter sempre a cidade dos chopais no coração. Curiosamente, cantando sobre os desfavorecidos, nasceu numa família que lhe proporcionou boa educação e boas condições de vida. Isso não fez dele autista ao país que amava, e ao apaixonar-se por uma mulher de classe social inferior, não hesitou em casar em segredo, contra a vontade de toda a família. Infelizmente o amor por Maria Amália não para toda a vida! Por estar em Coimbra, Zeca começou pela canção da cidade, aliás o primeiro disco é-lhe todo dedicado "Baladas e Canções" edição de 1964.
O músico Júlio Pereira diz "Era um andarilho: andava por toda a parte,
viveu em imensos sítios, ia às terrinhas, falava com as velhinhas,
ouvia-as cantar - e tinha uma memória musical impressionante".
Curiosamente, a censura deixou passar tantas canções de Zeca, talvez por
não entender o que diziam entre linhas.
A editora Orfeu disposta a arriscar, lançou "Cantares de Andarilho", claramente um disco político. A vida de Zeca, virava um pau de dois bicos; o poeta deixava as letras romanticas da canção coimbrã, para começar lentamente pôr o dedo na ferida num país que há muito não sabia o que era liberdade. Idolatrado por uns, estava na mira da Pide/DGS e chegou mesmo a ser preso. Os concertos de Zeca, davam quase sempre "molho" com os
núcleos de esquerda a convidá-los para espectáculos, conheceu alguns dos seus grandes amigos, como por exemplo, Vitorino. Na altura já estaria casado com a segunda
mulher Zélia, santa, por lhe aturar tantos achaques.
Arnaldo Trindade, editor da Orfeu, "Era muito nervoso e quando ia gravar "Cantares do Andarilho" notou que se tinha esquecido dos comprimidos para os nervos - não vou gravar, não vou gravar. Mas Correia Oliveira, disse-lhe para tirar os sapatos e desatou a dar-lhe pancadas nos pés". Este é apenas um episódio, mas há tantos, a sua mania das doenças levava-o à paranoia. Nos hoteis não podia ficar virado para o lado da rua nem para os elevadores, senão não dormia. Tinha espasmos, contrações violentissimas e berrava de aflição. Sempre tenso, a matutar, a sua cabeça não parava e o sistema nervoso foi-se degradando. Às vezes pegava na sacola e como um vagabundo, saia de casa e ia dormir para o teatro da comuna, aliás já era "cliente habitual" ao ponto de perguntar "então onde é que vou dormir hoje?". Consigo levava o pijama, livros, folhas de poemas soltos, pão, Vaporil e folhas de eucalipto, por causa do seu problema de sinusite. Não era um homem prático, e a mulher Zélia transportava-o, porque não conseguia desenrascar-se sozinho. A ironia de tudo isto, quando estava realmente doente, como qualquer hipocondríaco, achou que não era nada.
Faleceu em 23 de Fevereiro de 1987, no Hospital de Setúbal, às três horas da madrugada, vítima de esclerose lateral amiotrófica.
Da sua discografia destaco:
- Traz outro amigo também (1970)
- Cantigas do Maio (1971)
- Eu vou ser como a toupeira (1972)
- Venham mais cinco (1973)
- Com as minhas tamanquinhas (1976)
Em 1985, é editado o seu último álbum de originais, "Galinhas do Mato",
no qual, devido estado da doença, Zeca não consegue interpretar todas
as músicas previstas. O álbum acaba por ser completado por José Mário Branco, Sérgio Godinho, Helena Vieira, Fausto e Luís Represas.
Aliás entre este ano e o próximo serão lançados pela Orfeu, 11 registos de José Afonso, remasterizados, apartir das masters originais, por forma reeditar com melhores condições sonoras a obra ímpar do cantautor.
Sei que não gostaria de conhecer pessoalmente Zeca, mas hoje, sei ouvi-lo como nunca. E isso é o mais importante, o que deixou, a obra. Entendo na sua voz trémula, doce e harmoniosa, a história de todos nós. Não gosto de política, voto apenas por obrigação, mas noto que serão precisos muitos anos para sarar as feridas de um país que Zeca cantou como ninguém. Por isso lhes chamo canções intemporais, porque não devemos esquecer o passado, para evitar repetir os mesmos erros no futuro. Eu não sou nenhuma das mulheres que ele canta, mas essas mulheres estão na nossa raíz e só o compreendi com 35 anos de idade. Não direi tarde, mas levei um certo tempo....
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