quinta-feira, 22 de março de 2012

A Minha Prima Vera


A minha prima, deixava os edifícios cor de tijolos de Inglaterra, e por volta da Primavera regressava ao Portugal dos pequeninos. Tratada como uma estrela, comportava-se como elemento da realeza, sabia todas as atenções viradas para a miúda que trazia, as últimas da música, moda e até doçaria, lembro-me, dar-me a conhecer "marshmallows" ou pastilha elástica em bisnaga. Um harém de putos juntava-se em seu redor, delirando com os objectos que trazia,  o estilo invulgar e sotaque "inglesado". A prima aproveitava, claro, para vangloriar-se da Londres, totalmente desconhecida aos nossos olhos, acrescentava, usar uma crista verde no cabelo ou roupa segura por alfinetes de ama são coisas muito "fixes". Espantou-nos a todos quando revelou a tradução de "fish", palavra que usávamos em troco de nada, queria dizer, peixe. Em vez disso, deveríamos dizer "cool". Ora falava a especialista, já meio irritada, eu dizia "fixe" só porque sim.

Se na bagagem trazia discos de Bowie, Talking Heads ou New Order, às escondidas dos pais puxava de um cigarro e começava a ler NME (New Musical Express) ,em inglês, todos nós sentimo-nos uns "calhaus com olhos", para além de não compreendermos a língua, o máximo que chegava a Portugal, era a Bravo em alemão, e limitavamo-nos aos recortes para colar nos livros e cadernos. A prima tratava a revista como uma autêntica bíblia e na altura era a mais conceituada em música do reino unido. Os seus pais por outro lado, traziam no porta luvas do Fiat 127, cassetes do José Malhoa " 24 Rosas" ou Linda de Suza "Mala de Cartão". Em Londres viviam com os tostões contados, mas em Lisboa, faziam questão de abrir os cordões à bolsa e, a cada ano que passava, traziam dinheiro fresco para entregar nas mãos de um empreiteiro de confiança, para melhoramentos a fundo na casa que herdaram, numa bizarra história de partilhas familiares.

A prima era definitivamente uma tipa cheia de pinta e de carácter forte. Tão determinada, aos 18 anos decidiu trocar a urbaniade de Londres, por um país ainda a gatinhar sob uma recém descoberta democracia. Quis viver connosco, em vez de ocupar a casa de família. Trouxe os seus discos, as roupas arrojadas, alguns livros e uma bicicleta altamente inovadora com dois lugares. Naquele momento, percebi que perdera os meus amigos para a minha prima, que vinha para ficar, com aquela extraordinária bicicleta. Todos queriam andar, faziam-se filas, às vezes iam aos 3 e 4 em cada rodada, e eu assistia da minha varanda, ciumenta, ouvindo o disco da Samantha Fox "Touch Me". Queria tanto que me traduzisse aquela letra, mas o meu orgulho levou a melhor e nunca cheguei a fazer-lhe o pedido. A instável prima, após cansar-se dos putos da rua, desapareceu. A minha grande preocupação, o que raio quereria dizer "touch me"? Os meus pais raladíssimos, a prima delirante, afinal já era maior de idade e deixou uma carta a agradecer a estadia. No meu quarto, um bilhetinho com a tradução integral de "Touch Me" da "Raposa Peituda" e um Ps - a bicicleta é tua.

Só passados dez anos, a reencontrei, e pela altura da primavera, já casada com um escocês com jeito de quem gostava de fumar uns "charutos" para rir. Conheceram-se no Algarve, para onde foi, depois de deixar a casa dos meus pais. Regressaram a Londres e por lá se fixaram. Mas não há primavera como esta, e todos os anos regressam a Portugal. Propositalmente, a prima deixa esquecida uma peça sua em minha casa, como se tratasse de um presente de Natal, mas que chega com o sol da Primavera. É para mim, por isso, a Prima Vera, a que se chama Carolina, e que este ano deixou perdidos uns ténis brancos Le Coq Sportif



Os meus ténis brancos - Le Coq Sportif



 Para mais infos: acrisenaomoraaqui@gmail.com

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